Revista L+ Artes n.º 17, Outubro 2005
Instantes que uma máquina indiscreta capta transformam-se em pinturas. O realismo destas obras mostra-nos um certo tipo de Porto.
Um rapaz sentado na cama olhando para uma televisão
desligada, um grupo de amigos rindo ou a fumar, um rapaz deitado com um livro
de BD pousado ao seu lado, um retrato de uma rapariga com uma estranha expressão
facial. Estas são as cenas que Arlindo Silva pinta. Instantâneos da sua vida e
da dos seus amigos, captados fotograficamente de forma aleatória mas que
carregam com eles a intensidade dos momentos vividos pelos retratados e pelo
retratista. Este é sempre Arlindo Silva, que fotografa incessantemente. Das
imagens resultantes, selecciona algumas para pintar, dando-se então um processo
dignificante das imagens e do tempo fixado, como se de um ícone se tratasse.
Arlindo Silva
nasceu em 1974 na Figueira da Foz, tendo
estudado Pintura na Faculdade de Belas Artes do Porto, curso que terminou em
2001, com uma passagem pela Letónia no âmbito do programa Erasmus. Desde então,
tem-se apresentado em diversas exposições colectivas, maioritariamente em espaços
não comerciais, no Porto. Mais recentemente, esteve presente em duas
importantes exposições colectivas – “Toxic,
O Discurso do Excesso”, parte do Projecto Terminal em Oeiras, e “Digressões
sobre uma Urbanidade”, comissariada por Miguel Von Hafe Pérez integrada na
Bienal de Vila Nova de Cerveira. Teve a sua primeira mostra
individual na galeria Bores&Mallo, em Lisboa, em 2003. Trabalhou como
assistente de Baltazar Torres e lecciona pintura e desenho na Escola das Artes
da Universidade Católica.
Pintar a fotografia
A pintura de
Arlindo Silva traz consigo toda a recorrente discussão sobre o lugar da pintura
na arte após o aparecimento da fotografia. Cerca de 150 anos depois, a discussão
é inconsequente e será mais interessante, no caso de Arlindo Silva, colocar a
questão na relação existente entre a fotografia e a pintura que daí resulta.
Instantâneos fotográficos são transformados em trabalhos pictóricos que surgem
após um processo laborioso, intenso e minucioso. “Quando pinto, pinto obsessivamente. Faço directas atrás de directas,
esquecendo-me de comer, de tomar banho, mergulho por completo na pintura”,
diz. Neste processo, os instantâneos ganham uma outra dimensão temporal que
leva ao enobrecimento das personagens e situações representadas. “Adoro fotografia, mas a pintura exige um
tempo que enriquece a imagem. Na passagem da imagem para a pintura, existe algo
que a fotografia não é capaz de transportar com ela, algo de físico, matérico,
quase ligado à dor,… com o cheiro”.
Estas imagens têm
uma forte componente auto-biográfica pois remetem sempre para episódios da vida
de Arlindo Silva, mesmo estando naqueles momentos atrás da câmara, numa posição
vouyeristica. É a sua vida e dos seus
amigos que aí aparece representada, de forma intensa e que o meio
dignifica.
Julio César Vidal, no texto para a exposição na Bores&Mallo, refere-se
deste modo à sua pintura: “La figuración
de Silva podría, en cambio, tal vez, calificarse, acudiendo a una taxonomía
literaria, como realismo sucio, una traducción de lo literario a lo pictórico
que se corporiza en la materialidad del pigmento tratado de modo empático, con
un sesgo lejano, pero originalmente expresionista. La figuración de Silva no
esconde (destruyéndolo) su artificio, lo enaltece por mor de un desvelamiento.
El de la intimidad de unos jóvenes. Y parece aproximarse a una cuestión social
de la mayor actualidad: la de la soledad, la ausencia, la derrota y el silencio
que nos atenaza”.
Pronúncia do Norte
Arlindo Silva capta nas suas obras o peso do ar do
Porto, das dificuldades dos jovens artistas, da arquitectura da zona oriental
da cidade. Como se o realismo sujo que Vidal fala se pudesse aplicar ao Porto
no geral e se concentrasse nas vidas destes jovens, uma geração que terá nos
quadros de Arlindo Silva a narrativa ilustrada de parte das suas vidas, qual BD
sem vinhetas.
Num plano mais alargado de amizades, há que sublinhar a
importância do grupo de jovens artistas que nos últimos anos tem dinamizado a
actividade expositiva no Porto, recorrendo a espaços ditos alternativos, como Pêssego
Prá Semana, Salão Olímpico, Maus Hábitos, onde Arlindo Silva expôs juntamente
com um grupo de artistas que aos poucos, e com todo o merecimento, começam a
ganhar certa visibilidade. (Isabel Carvalho, Carla Cruz, Eduardo Matos, Carla
Filipe, Nuno Ramalho, Renato Ferrão, Manuel Santos Maia, André Sousa, Marco
Mendes, Sónia Neves, Miguel Carneiro, Mafalda Santos, João Marçal…).
Em artistas novos,
em especial naqueles que trabalham com pintura, há a tendência de tentar
definir genealogias referenciais. Apesar de Arlindo Silva evitar fazê-lo, lá
vai soltando alguns nomes que diz serem inevitáveis e óbvios: Lucien Freud, Velásquez,
António Lopez, Tim Gardner, Gerard Richter, Otto Dix, Muntean/Rosenblum, Paula
Rego... Assume que a sua pintura absorve naturalmente toda a tradição pictórica
mas, em termos de conteúdo, o seu trabalho tem como referências mais fortes
artistas de outras áreas, de Larry Clark a Nan Goldin, na fotografia, passando
por Jack Kerouac ou Charles Bukowski, na
literatura. Muito importante para o seu trabalho, diz-nos Arlindo Silva, é
igualmente a música e a BD. Em todas estas influências, a expressão literária “realismo
sujo”, com que Vidal classificou o seu trabalho, é transversal em certo ponto.
No próximo mês de Novembro, Arlindo Silva terá a sua terceira exposição individual, desta vez na Galeria Piso
Zero, novo espaço no Porto, que inaugura este mês com uma exposição colectiva da
qual este artista também faz parte. Até ao momento, o preço dos seus trabalhos
rondava os 1500 euros. Agora, passa a ser representado pela primeira vez por
esta nova galeria o que dará, com certeza, um novo alento comercial à sua
carreira. Embora o facto de até agora trabalhar de forma independente não o
tenha impedido de vender todos os seus trabalhos a coleccionadores mais
atentos.