Paixões alegres

Por Óscar Faria


PÚBLICO, Ípsilon, Sexta-feira, 22 de Fevereiro 2008.
A Espuma dos Dias
De Arlindo Silva
Porto. MCO Arte Contemporânea. R. Duque de Palmela, 141/143. Até 04/03/2008.



A pintura de Arlindo Silva (Figueira da Foz, 1974)  propõe um novo realismo social centrado na ideia de comunidade. As suas obras testemunham um tempo e uma época precisos: a cena artística do Porto do início do século XXI.
Contudo, esse retrato é muito particular, pois é sobretudo elaborado a partir de acontecimentos privados, onde festas, o álcool, as drogas produzem uma metamorfose nos rostos, nos corpos, nas personalidades. É essa transformação que é fixada na tela, numa tentativa de prolongar esse instante fixado por uma máquina fotográfica. Existe ainda uma outra  característica nos trabalhos deste autor, a sua afirmação enquanto “memento mori”, essa lembrança da brevidade da vida, da mortalidade do ser humano.
A exposição agora proposta dá continuidade às pesquisas desenvolvidas pelo artista na relação sempre tensa entre fotografia e pintura, pois embora todas as obras tenham como origem o meio mecânico, elas procuram acrescentar outras dimensões ao retrato instantâneo. A primeira transformação diz respeito ao tempo, que é dilatado pela própria passagem do tempo, que é dilatado pela própria passagem do digital para a tela. Esta espécie de recuo permite criar as condições para agarrar a aura de cada instante, de cada personagem, resgatando-as assim da mortalidade imposta pela imagem original. Há, porém, uma outra metamorfose nesse movimento: a de cada indivíduo num duplo de si próprio, como se o ganhar de pele, traísse a sua condição — pictórica — de morto-vivo; e a realidade ganhasse, nessa assunção da sua crueza, uma inquietante estranheza.
Na galeria MCO, Arlindo Silva propõe três pinturas e dois desenhos a carvão — a mostra ficaria a ganhar se apenas incluísse as telas. Nos trabalhos apresentados reconhecem-se alguns protagonistas da cena artística do Porto, como Mafalda Santos, Miguel Carneiro e Carla Filipe; dois auto-retratos completam a exposição. São obras de pequenas dimensões, onde se regista a crescente preocupação do artista com os detalhes — por exemplo, a parede do atelier em “Como estamos?” (2008), na qual se observa a presença de algumas publicações independentes editadas na cidade. As pequenas narrativas contadas pelo autor jogam também com o estatuto de casa imagem, pois nem os títulos — “Eia cum carago!” (2008), “Feliz Ano Novo” (2007), etc. — fornecem pistas acerca os representados. É, acima de tudo, evidente a competência técnica na realização de cada quadro. “La Ritournelle” (2008), no qual se vê uma personagem, de pé, captado pela luz de um “flash”, com um pano de fundo nocturno (um muro caiado, uma espreguiçadeira de piscina), é um exemplo desse enigma que pode constituir uma pista, pois “1837 acerca do ritornelo” é um dos capítulos de “Mil Platôs”, a obra maior de Gilles Deleuze e Félix Guattari: “Forças do caos, forças terrestres, forças cósmicas: tudo isso se afronta e decorre no ritornelo.”
Existe ainda uma outra hipótese, uma música de Sebastien Tellier, do álbum “Politique” (2005), cuja letra é uma declaração de amor: “I got that beat in my veins for only rule / love is to share, mine is for you.” Atente-se novamente na imagem e nela reconhece-se Arlindo Silva que, todo encharcado, procura desabotoar um punho da sua camisa branca, num dos dedos da outra mão, distingue-se um anel. O instante irá repetir-se para sempre. Trata-se este de um trabalho, como quase todos os realizados pelo artista, feito de paixões alegres: “Enquanto não estamos dominados por sentimentos contrários à nossa natureza, temos o poder de ordenar e de encadear as afecções do corpo segundo uma ordem conforme ao entendimento”, notava Espinosa na sua Ética.