RAR
Holding, Relatório de Contas 2002
Com o advento da
modernidade estética, que comportou um processo de crescente autonomização da obra
de arte, começaram a atenuar-se os usos comemorativos e apologéticos associados
à produção plástica. Se tal facto é facilmente perceptível no domínio da
estatuária pública, também no universo da pintura qualquer leigo constatará que
as temáticas dominantes raramente se ancoram na necessidade de propor
estruturas iconográficas que possam servir de veículos de mensagens
preestabelecidas. A este deslocamento não foi estranho o aparecimento da
fotografia enquanto transmissor supostamente mais fiel da realidade, pelo que
muitas das necessidades documentais, tanto no âmbito do retrato, como no
domínio do que hoje poderíamos apelidar de documentário visual, acabaram por
cair nas malhas da imagem tecnicamente reprodutível (a que acrescem as imagens
em movimento e, mais recentemente, as imagens virtuais, que fazem as delícias
dos arquitectos, por exemplo, que assim podem antecipar modelos ultra-realistas
daquilo que ainda se encontra apenas em projecto, propondo, no fundo,
documentários ficcionados de uma vida por vir).
Curiosamente, neste projecto que temos vindo a desenvolver para o Grupo
RAR e que consiste basicamente no convite a um artista no sentido interpretar
visualmente o universo deste grupo empresarial, nunca as imagens propostas se
aproximaram tanto de um contexto pré-moderno, contrário ao que referenciei no
inicio do texto. Na verdade, quando o ainda muito jovem autor Arlindo Silva me
deu a conhecer as pequenas pinturas que agora se apresentam, revelou-me que na
sua origem esteve uma ideia de reproblematízar e recontextualizar o valor-uso de objectos artísticos criados
mediante uma encomenda. Assim, o seu desejo foi o de realizar pequenos
fragmentos visuais que, por hipótese, pudessem servir como uma espécie de memorabilia transportável, algo que hoje
em dia fazemos essencialmente com imagens de familiares ou daqueles que nos são
mais próximos.
O que torna esta proposta particularmente notável sedimenta-se na
eloquência formal de uma pintura que vai até ao mais inesperado detalhe, mas
que não se esgota em qualquer tipo de pretensão hiper-realista. Na verdade, a
própria textura da trama das pequenas telas ainda se faz evidenciar sob as
várias camadas pictóricas executadas a óleo e o trânsito perceptívo entre
aquilo que é representado e o seu modo de representação repete-se num contínuo
esteticamente primordial. Estes são objectos que apetece tocar e manusear, isto
é, de verificar o modo tão persuasivo de se conseguir instaurar uma fractura
entre aquilo que é representado, que tanto pode ser um minúsculo cubo de
açúcar, como o infinito de um céu trespassado por um avião, e a sua inesperada
concretização.
Contrariando o valor-exposição que a contemporaneidade não se cansa de
afirmar como predominante, num movimento de crescente musealização e
consequente visibilidade pública de tudo o que se considera arte, Arlindo Silva
parece apelar a uma relação mais íntima e privada com as suas obras, já que
elas encontram num destinatário especifico a sua comunidade de fruição vital.