Texto de exposição, Galeria PISOZERO, MCO Arte Contemporânea, Novembro 2005
Eu estive aqui! Assim o Homem assinala a sua passagem por este mundo.
Desde as pré-históricas inscrições com sangue de boi nas paredes interiores das
cavernas mais resguardadas, passando pelos rabiscos a navalha nos troncos das
árvores, à filosofia de algibeira que povoa os wc´s do mundo civilizado, o
ser-humano parece não resistir à tentação de povoar o espaço visual circundante
com a sua marca.
Com a democratização do
acesso à tecnologia, a fotografia amadora, aliada a um turismo de massas em
passo de ginástica, tornou-se assim o expoente máximo e caricatural desse
incontrolável desejo de testemunhar a nossa passagem por determinado lugar, a
conquista de um espaço, afinal prova inequívoca da nossa existência. Uma acepção
que se poderia resumir no chavão “Fotografo,
logo existo”! Nesta relação
criada entre o Homem e a fotografia adivinha-se algo de religioso: a expansão
deste médium a uma escala planetária trouxe consigo uma inesperada dimensão
espiritual, já que a atenção dispensada às fotografias caseiras impressas em
tamanho de bolso se aproxima inegavelmente ao culto e adoração de ícones
religiosos que anteriormente amparavam o ser-humano da sua incontornável
efemeridade. Ao mais comum dos mortais tornou-se possível criar, por vezes com
uma displicência obscena, as suas próprias imagens de devoção à velocidade de
um “Click”!
Nuno e Marcelo, Miau!, Cristina, Dói-Dói,, 03h a.m. Bem Bom! Estas são
as imagens que Arlindo Silva não consegue evitar, refracções que lhe vigiam o
sono e lhe pisam os calos no autocarro, pequenas obsessões que tornam a relação
com o mundo um pouco menos monótona! Com a mesma ingenuidade instintiva de um
turista frente ao Taj-Mahal, fotografa incessantemente os seus amigos nas mais
variadas ocasiões e assim perpetua a sua passagem por este(s) lugar(es)! A
máquina fotográfica surge assim como uma prótese tecnológica, o meio mais
imediato de quem procura obstinadamente apreender a realidade.
Arlindo conhece bem os
modelos que pinta, conhece os seus hábitos, os seus comportamentos, observa-os
atentamente enquanto se alimentam em grupo, conhece-lhes os jeitos, os
trejeitos e as faltas-de-jeito, memoriza-lhes as fisionomias (indispensável
para corrigir certas deformações fotográficas), distingue-os entre a multidão.
Devora-os. Através de uma chantagem irrecusável, tentadora, engorda-os e
embebeda-os e assim conquista, com educação, o direito total para usar e abusar
das fotografias que acompanham os serões partilhados.
Esses
registos serão o ponto-de-partida para pinturas que, apesar de muitas vezes
consideradas hiper-realistas no sentido mais rasteiro da expressão, são antes
de tudo transfigurações emotivas das realidades sensíveis que captam. Sem
abusar das possibilidades geradas por esta tecnologia, usa-as apenas como
auxiliar da sua memória visual, aliás profícua, e completa-as com o seu
discernimento. Uma espécie de intuição empírica de quem pertence genuinamente à
realidade que se propõe escrutar.
Aqui o jogo da representação
é sofisticado, a realidade devidamente triturada, e a presentificação dos
ambientes através de uma sedução formal descarada, assustadora. Sentimo-nos
hipnotizados, aprisionados nesta teia virtuosa de aparências. A procura do real
torna-se obsessiva, mesmo caprichosa, desde a mancha de vinho na braguilha,
passando pela cicatriz do apêndice, o cabelo suado, a tez corada de euforia,
até ao chumbo no dente ou a carraça camuflada no dorso do felino, tudo o que
deliberadamente decide ser indispensável para adensar a singularidade de cada exibição.
Através de um tratamento
exímio das superfícies que reconstrói, e da inevitável deformação imagética e
sensível de quem procura representar o que vê,
Arlindo reveste estas aparições de uma verosimilhança imprevista, uma evocação
sincera à medida da realidade que se propõe documentar. As evidências
exteriores tornam-se por isso, paradoxalmente, o espelho das ocultações
interiores, já que tudo o que há para saber encontra-se dentro dos confins do
suporte.
As personagens dos quadros
exibem-se ora em fundos assépticos, depurados de indícios que contextualizem a
acção (permitindo que a tensão do quadro se concentre num especial jeito dos
lábios, no vermelhão dos olhos que denuncia consumos menos saudáveis, etc…),
ora são cativos de composições complexas, instantes
decisivos, pausas imprevistas de acção que reclamam do observador a
reconstituição de uma narrativa interrompida, incompleta.
Ao contrário dos modelos
promovidos pela publicidade invasora e de ideias curtas com que todos os dias
somos bombardeados, rapazes e raparigas desinfectados, polidos, ostentando
dentaduras destartarizadas e abdominais apolíneos, impolutos, à medida de uma
realidade sem defeitos, não há nas figuras retratadas destes quadros vontade de
evidenciar qualquer estilo de vida exemplar ou conveniente. Estes não são os
heróis de um mundo ideal, e por isso a pose é espontânea, poder-se-ia mesmo
dizer tímida. O comportamento dos intervenientes é, muita das vezes,
não-racional, e através de condutas desafectadas, desavergonhadas, procuram
esgotar-se, levar a existência aos seus limites, restaurando o convívio com a
dor, a humilhação ou a desgraça como partes integrantes da nossa experiência.
Errantes, meros vagamundos, a glória destes personagens reside na sua própria
mortalidade.
Evitando sempre que pode
auto-representar-se (como alguém que evita militantemente o seu reflexo),
Arlindo desdobra-se e revê-se invariavelmente em cada um destes flashes.
Através desta catarse, aproveita a circunstância provocada e faz o luto de cada
imagem e, por conseguinte, do tempo de que ela é prova, um alívio que se torna
mais evidente cada vez que encerra uma série: Apartamento 16, Verão Azul,
etc... Cada um desses capítulos sendo, por isso, simultaneamente um falhanço e
um recomeço.