Noites Bravas

Por Miguel Carneiro


Texto de exposição, Galeria PISOZERO, MCO Arte Contemporânea, Novembro 2005

Eu estive aqui! Assim o Homem assinala a sua passagem por este mundo. Desde as pré-históricas inscrições com sangue de boi nas paredes interiores das cavernas mais resguardadas, passando pelos rabiscos a navalha nos troncos das árvores, à filosofia de algibeira que povoa os wc´s do mundo civilizado, o ser-humano parece não resistir à tentação de povoar o espaço visual circundante com a sua marca.
Com a democratização do acesso à tecnologia, a fotografia amadora, aliada a um turismo de massas em passo de ginástica, tornou-se assim o expoente máximo e caricatural desse incontrolável desejo de testemunhar a nossa passagem por determinado lugar, a conquista de um espaço, afinal prova inequívoca da nossa existência. Uma acepção que se poderia resumir no chavão “Fotografo, logo existo”!  Nesta relação criada entre o Homem e a fotografia adivinha-se algo de religioso: a expansão deste médium a uma escala planetária trouxe consigo uma inesperada dimensão espiritual, já que a atenção dispensada às fotografias caseiras impressas em tamanho de bolso se aproxima inegavelmente ao culto e adoração de ícones religiosos que anteriormente amparavam o ser-humano da sua incontornável efemeridade. Ao mais comum dos mortais tornou-se possível criar, por vezes com uma displicência obscena, as suas próprias imagens de devoção à velocidade de um “Click”!
Nuno e Marcelo, Miau!, Cristina, Dói-Dói,, 03h a.m. Bem Bom! Estas são as imagens que Arlindo Silva não consegue evitar, refracções que lhe vigiam o sono e lhe pisam os calos no autocarro, pequenas obsessões que tornam a relação com o mundo um pouco menos monótona! Com a mesma ingenuidade instintiva de um turista frente ao Taj-Mahal, fotografa incessantemente os seus amigos nas mais variadas ocasiões e assim perpetua a sua passagem por este(s) lugar(es)! A máquina fotográfica surge assim como uma prótese tecnológica, o meio mais imediato de quem procura obstinadamente apreender a realidade.
Arlindo conhece bem os modelos que pinta, conhece os seus hábitos, os seus comportamentos, observa-os atentamente enquanto se alimentam em grupo, conhece-lhes os jeitos, os trejeitos e as faltas-de-jeito, memoriza-lhes as fisionomias (indispensável para corrigir certas deformações fotográficas), distingue-os entre a multidão. Devora-os. Através de uma chantagem irrecusável, tentadora, engorda-os e embebeda-os e assim conquista, com educação, o direito total para usar e abusar das fotografias que acompanham os serões partilhados.
Esses registos serão o ponto-de-partida para pinturas que, apesar de muitas vezes consideradas hiper-realistas no sentido mais rasteiro da expressão, são antes de tudo transfigurações emotivas das realidades sensíveis que captam. Sem abusar das possibilidades geradas por esta tecnologia, usa-as apenas como auxiliar da sua memória visual, aliás profícua, e completa-as com o seu discernimento. Uma espécie de intuição empírica de quem pertence genuinamente à realidade que se propõe escrutar.
Aqui o jogo da representação é sofisticado, a realidade devidamente triturada, e a presentificação dos ambientes através de uma sedução formal descarada, assustadora. Sentimo-nos hipnotizados, aprisionados nesta teia virtuosa de aparências. A procura do real torna-se obsessiva, mesmo caprichosa, desde a mancha de vinho na braguilha, passando pela cicatriz do apêndice, o cabelo suado, a tez corada de euforia, até ao chumbo no dente ou a carraça camuflada no dorso do felino, tudo o que deliberadamente decide ser indispensável para adensar a singularidade de cada exibição.
Através de um tratamento exímio das superfícies que reconstrói, e da inevitável deformação imagética e sensível de quem procura representar o que , Arlindo reveste estas aparições de uma verosimilhança imprevista, uma evocação sincera à medida da realidade que se propõe documentar. As evidências exteriores tornam-se por isso, paradoxalmente, o espelho das ocultações interiores, já que tudo o que há para saber encontra-se dentro dos confins do suporte.
As personagens dos quadros exibem-se ora em fundos assépticos, depurados de indícios que contextualizem a acção (permitindo que a tensão do quadro se concentre num especial jeito dos lábios, no vermelhão dos olhos que denuncia consumos menos saudáveis, etc…), ora são cativos de composições complexas, instantes decisivos, pausas imprevistas de acção que reclamam do observador a reconstituição de uma narrativa interrompida, incompleta.
Ao contrário dos modelos promovidos pela publicidade invasora e de ideias curtas com que todos os dias somos bombardeados, rapazes e raparigas desinfectados, polidos, ostentando dentaduras destartarizadas e abdominais apolíneos, impolutos, à medida de uma realidade sem defeitos, não há nas figuras retratadas destes quadros vontade de evidenciar qualquer estilo de vida exemplar ou conveniente. Estes não são os heróis de um mundo ideal, e por isso a pose é espontânea, poder-se-ia mesmo dizer tímida. O comportamento dos intervenientes é, muita das vezes, não-racional, e através de condutas desafectadas, desavergonhadas, procuram esgotar-se, levar a existência aos seus limites, restaurando o convívio com a dor, a humilhação ou a desgraça como partes integrantes da nossa experiência. Errantes, meros vagamundos, a glória destes personagens reside na sua própria mortalidade.
Evitando sempre que pode auto-representar-se (como alguém que evita militantemente o seu reflexo), Arlindo desdobra-se e revê-se invariavelmente em cada um destes flashes. Através desta catarse, aproveita a circunstância provocada e faz o luto de cada imagem e, por conseguinte, do tempo de que ela é prova, um alívio que se torna mais evidente cada vez que encerra uma série: Apartamento 16, Verão Azul, etc... Cada um desses capítulos sendo, por isso, simultaneamente um falhanço e um recomeço.