Habitar a Pintura
Entrevista a
Arlindo Silva
por Sandra
Vieira Jürgens
ARQ./A: Revista de
Arquitectura e Arte, n. 57, Maio 2008
Arlindo
Silva (Figueira da Foz, 1974) dedica-se a pintar momentos que capta com
naturalidade e autenticidade com a sua máquina fotográfica. São instantes
congelados, que advém pintura, que passam pelo filtro da sua memória e
constituem retratos surpreendentes do seu círculo de amigos.
Nesta
entrevista falámos sobre os processos de produção da sua mais recente
exposição, “A Espuma dos Dias”, sobre as características da sua obra e,
fundamentalmente, de pintura.
Fale-me da sua mais recente exposição “A
Espuma dos Dias” na galeria MCO Arte Contemporânea, no Porto.
Comecei a
produzir a exposição em Dezembro a partir de algumas imagens que já tinha
seleccionado sem que existisse uma aparente ligação entre elas. Eram três
imagens e havia também um conjunto de desenhos que gostava de mostrar, e pensei
que o título “A Espuma dos Dias” poderia ser o fio condutor desse grupo de
trabalhos. “A Espuma dos Dias” é um título que aparentemente não é objectivo,
pode ser muita coisa: pode indicar o correr das coisas, pode ser igualmente o
que fica do marulhar dos dias, como se os dias fossem ondas. A leitura do
título também depende do espectador mas parece-me que consegui criar através
dele uma ligação entre essas imagens que estavam aparentemente desligadas.
Normalmente quando faço uma exposição, trabalho quase a um nível episódico, dou
um título, apresento as imagens e parece que fecho a exposição, mas ainda assim
ela permanece aberta a pequenos seguimentos, como se fossem quase cenas dos
próximos capítulos. Por exemplo, a série “Noites Bravas” não está fechada. Fiz
recentemente um trabalho e tenho a sensação que as séries se podem ir arrastando
no tempo. Podem ir completando-se como se fosse num sistema ou numa organização
mosaico.
Que relação existe entre as várias séries
de trabalho? Têm autonomia ou desenvolvem-se como prolongamentos de anteriores?
Os limites
das séries vão-se esbatendo, mas no início pintava quadros sem ter a pretensão
de definir séries. Eu comecei por retratar os meus amigos, as pessoas que
viviam comigo num apartamento sem a preocupação de dar títulos aos trabalhos.
Em 2000, chegámos a fazer uma exposição colectiva que se chamava “Apartamento
16” e onde fizemos um concerto, tínhamos comida, e podíamos ser visitados por
qualquer pessoa. Foi um acontecimento muito descontraído. Depois comecei a
aperceber-me que dar um título aos trabalhos poderia ser importante para situar
o trabalho. Isto foi na altura em que já tinha saído do apartamento, em que já
estava formado e vivia uma outra situação. E nessa altura pensei: Por que não
dar fim a um momento muito próprio? O título poderia ser o género de uma marca
do tempo. Não seria uma lápide mas poderia balizar datas: 2000 – 2002.
As “Noites
Bravas” não me parecem ter um fim, elas continuam, vão acontecendo no Porto, no
Alentejo, mas tenho alguns quadros que ainda hoje não consigo colocá-los numa
série. São imagens que eu revisito e passo para a pintura e que tem quase um
carácter particularmente iconográfico. São intensas, condensam, cristalizam
momentos que poderiam ser os de qualquer um de nós.
Que momentos privilegia quando está a
fotografar?
As situações
vividas no apartamento onde morei com o Marco e o Diogo eram por vezes tão
intensas, que quis captá-las de uma forma informal. Fui fotografando muito e
foi mesmo através dessa constante e incessante acção que notei como
progressivamente ia caindo a máscara das pessoas que fotografava. Talvez não
fosse bem o cair da máscara, mas havia um acto de posar que eu notava, por
exemplo no Marco que tinha mais jeito para posar porque encenava. Mas houve um
momento em que se deu uma certa viragem: o posar também se tornou representação,
mas era uma representação bastante mais genuína, quase até ambígua…Como se a
representação se tornasse ela própria realidade. Ou seja, agradou-me essa
situação de banalizar tanto o acto fotográfico que as pessoas já olhavam para
mim como se eu não estivesse com a máquina fotográfica. É uma coisa
extremamente normal sobretudo quando se vive com fortes graus de intimidade.
Tinha imensas fotografias, centenas de fotografias e lembro-me que as espalhava
pelo chão e tentava perceber o que é que podia fazer com elas. Nessa altura
estava no meu terceiro ano da faculdade, um ano extremamente conflituoso,
sobretudo porque entraram novos professores para a faculdade que questionaram o
fundamento da pintura e nos colocaram questões sobre essa prática: vamos olhar
para o cavalete, é um objecto obsoleto… E de um momento para o outro são estes
professores que também nos criam situações de namoro com alguns artistas que
não conhecia, caso da Nan Goldin, Richard Billingham… Mas isso não foi talvez o
mais relevante. Na altura senti que tinha que fazer qualquer coisa porque me
agradava essa ligação com uma verdade.
Gostaria que me explicasse essa ligação com
a verdade?
É uma
ligação com a autenticidade. Agradava-me essa pretensão de alcançar um olhar de
medusa através da máquina fotográfica, sentir que conseguia congelar essa
imagem. Por isso é que a fotografia é muito importante para mim. Mas a verdade
é que depois de ter as fotografias, senti também que não era através da
fotografia que atingia o corpo ou a substância que necessitava. Precisava que a
fotografia passasse outra vez por mim, como um género de filtro, em que eu
pudesse enriquecer novamente aquele processo da imagem. É como se a fotografia
passasse a ter o papel dum mero esboço da realidade e que eu pudesse enriquecê-la
e torná-la mais densa através da minha memória, da forma como eu vou observando
os meus amigos, e do processo de enfatizar, de retirar alguns pormenores da
imagem.
Altera muito a imagem fotográfica quando se
dá a passagem para pintura?
Sim, sim. Há
imagens fotográficas que não têm qualquer definição e agrada-me muito trabalhar
sobre essa imagem e aceitar o desafio de através dela despoletar em mim esse
conjunto infinito de memórias. Há qualquer coisa de mágico nisto É como se eu
pudesse condensar naquela imagem tudo o que eu sei sobre aquela pessoa naquele
momento, o antes e o depois daquele instante. É por isso que as imagens ficam
um pouco caricaturais, e se pessoas olharem para elas verão que não são assim.
Dá a sensação que eu as passo por qualquer tipo de máquina que as torna
ligeiramente diferentes…As pessoas às vezes até dizem que eu as torno mais
feias… O termo caricatura pode-se aplicar aqui porque se trata de enfatizar
algumas situações e a verdade é que eu enfatizo certas características das
pessoas, mas não sei se a caricatura será o termo mais apropriado. Tenho que
pensar num termo. Eu não procuro o grotesco, eu até acho que já fiz algumas
imagens belas. Lembro-me que numa conversa o José Maia me perguntou porque é
que eu tinha tornado a Cristina Regadas tão feia. Ele disse-me: a Cristina é
lindíssima e toda a gente vê a Cristina como alguém que está intimamente ligada
ao glamour. Mas não sei, não procuro o grotesco… Mas porque não mostrar por
vezes as dicotomias e desmistificar? Lembro-me que quando a Cristina Regadas
viu esta imagem me disse: não a pintes. Tal como a Mafalda Santos, que quando
viu a sua imagem pediu-me para que eu não a pintasse. Mas não foi isso que me
fez pensar: ah agora vou pintar. Já tinha isso determinado.
Como é que selecciona as imagens
fotográficas que quer representar em pintura?
Tenho
imensas imagens que funcionam apenas como fotografia e um dia gostava de as
organizar. Por exemplo, em relação às muitas fotografias que fiz na Letónia não
consegui passar mais de duas imagens para pintura. O meu olhar foi fotográfico,
na aproximação que eu tive com o modelo, no enquadramento… nessa pretensão de
compor. Por vezes não tenho essa atenção e, agora, com as imagens digitais a
surpresa já não é tão grande. Antes esperávamos que a fotografia fosse
revelada, às vezes podia não sair bem, pela abertura escolhida, mas agora
podemos ver logo a imagem, podemos apagá-la se o cartão estiver cheio… Sabemos
de imediato se são boas, isto é, se caracterizam o momento, se têm um carácter
mais estético, mais insólito, ou até mais universal. Por exemplo, mesmo sendo a
imagem do Marco, a verdade é que poderia ser a de outra pessoa. Às vezes não
consigo explicar isto muito bem, mas é como se tivéssemos lido um livro e ao
ouvir o seu título nos arrepiássemos porque o título nos remete para tudo o que
lemos. Como se o título tivesse o efeito de arrastar tudo. E há imagens que tem
esse poder, é como se ela pudesse congregar tudo aquilo que eu sei sobre essa
pessoa. A imagem pode nem ser perfeita mas também não procuro a perfeição. Mas
a verdade é que quando entro na pintura apareço como director, como alguém que
trabalha a luz, alguém que define a dimensão, alguém que projecta a pessoa lá
para trás. Sinto que sou eu que estou a dominar e possivelmente a mentir
através da pintura. Se calhar mentir não é o termo. Mas mesmo que eu não esteja
a ser sincero em relação à realidade que é a fotografia, depois, a pintura
vai-se tornando mais real do que a própria realidade. Vai perdurar, enquanto a
realidade não perdura. Ao fim e ao cabo o meu trabalho também tem a ver com
essa questão, com o tempo. Com o olhar, e também como outras questões.
Encara esses trabalhos como se fossem
retratos daquelas pessoas?
Há pouco
tempo comecei a pensar que nós somos muitas pessoas. Há o Arlindo professor, o
Arlindo que está com a Sónia… Nós vamos dando-nos às pessoas e por vezes
surpreendemos, por vezes desiludimos, e a amizade também tem a ver com esse
factor de desilusão. Não mostro tudo o que sou, e desiludo, mas a outra pessoa
também me pode mostrar a sua desilusão. É quase uma troca. Se tenho a intenção
de retratar? Sim, pontualmente. Mas há muitos Marcos congregados no Marco e
todos eles são o mesmo Marco. Isto não é nada de transcendente, é algo que
todos nós sabemos.
E faz o retrato da sua geração?
Isso é fruto
do acaso. Mas se é o retrato da geração artística onde é que se incluem as
outras pessoas que não fazem parte da geração artística? Agora claro que os
meus amigos, o Miguel, o Marco, o André, vão aparecendo retratados e eu
adoraria que no final estivessem todos juntos numa grande sala, sem que tivesse
esquecido ninguém.
Como é o seu processo de trabalho?
Normalmente
tenho as imagens, costumo fotografá-las em slide, e obviamente perco qualidade.
Às vezes fotocopio para acetato e através desse processo projecto a imagem na
parede para ter a noção de escala. Tenho que ser muito metódico e preciso de
ter essa noção quando compro a grade já que não consigo olhar para a imagem e
dizer isto vai ficar com a dimensão 60 x 40 cm. Depois costumo projectar a
imagem para ter uma noção do espaçamento da composição e por vezes faço o
desenho. Isto numa primeira fase. De seguida pego na imagem, que normalmente é
pequena, e desenvolvo o meu próprio exercício de memória. No desenho tento dar
a informação necessária para a pintura, vou alterando algumas situações,
ocultando, enfatizando certas características, traços, jeitos de cabelo,
corrijo distorções fotográficas, e depois inicio o processo de pintura, que é
obviamente mais desgastante que o acto de desenhar.
Referiu que os seus professores
questionaram a pintura. Na altura o que é que pensou em relação à pintura?
Esse
questionamento foi importante mas não foi pacífico. Trouxe dúvidas numa altura
em que os alunos estavam à procura de referências. Mas essas dúvidas poderão
ter um lado positivo, de abertura de horizontes. Hoje sinto-me muito aberto a
tudo e para mim não é essencial a forma que a arte veste - da pintura, do vídeo
da performance - mas sim, o conteúdo. A forma é mediadora. No meu caso, procuro
a pintura porque ela é a forma mais adequada para o meu conteúdo. Necessito que
a imagem passe por mim e até poderia trabalhar no Adobe Photoshop, poderia
fazer manipulação, mas não é isso que me interessa. Quero algo mais epidérmico,
mais de corpo e esse corpo teria de ser eu a fazê-lo, com as falhas técnicas
que ela apresenta, com a noção de um crime que nunca é perfeito e que tem as
suas pequenas falhas. Quando apresento a pintura ela é o meu crime, mas toda a gente
sabe quem é o serial killer.
Mas também
sei que é muito importante ter abertura. Por vezes sinto necessidade de falar
de uma outra maneira, não através da pintura, mas de outras formas. Há imensas
ideias que tenho e que não as consigo revestir por intermédio da pintura. Ou
seja, para mim foi óptimo o aparecimento desses professores que me abriram o
raio de visão. Sinto que estava caminhar muito num sentido, e hoje caminho no
mesmo sentido, mas a amplitude é maior. Tenho menos dúvidas. A estrada é a mesma
mas agora vou prestando atenção a outras coisas.
Normalmente trabalha em pequeno formato?
Trabalho em
pequeno formato porque a minha aproximação aos modelos é sempre uma aproximação
curta. Agrada-me a questão do tempo e para mim é importante torná-lo mais
elástico na pintura, sobretudo dar mais tempo. O tempo é visível na minha
pintura, e não é só o tempo que eu dedico a um trabalho; já que também estou a
retratar uma situação efémera, de milésimos de segundo. Mas a questão
interessante é sobretudo pensar que essa imagem se vai arrastar por muitos anos
e que esse é um momento muito particular. É sobre aquela questão do memento mori que já vem de outras artes,
que nos fala sobre a situação de lembrança: lembra-te que és mortal. Agrada-me
trabalhar também sobre essa questão da lembrança da morte.. Em si própria a
fotografia já nos remete para esse facto, mas com a pintura parece ganhar outra
intensidade. Não quer dizer que não hajam fotografias com essa intensidade,
também existem. Porém, o meu olhar não é fotográfico. Às vezes as pessoas
dizem-me que a minha pintura é hiper-real, é fotográfica, e eu digo com alguma
tristeza que não é isso que eu gostaria que ela fosse. Gostaria que ela fosse
real. Se eu pudesse fazer com que o Marco conseguisse estar a sorrir quatro
dias na banheira… fascina-me o real. A fotografia falha logo nessa tentativa de
tentar agarrar o real porque não é o real. Falha mas há artistas que conseguem
agarrá-lo literalmente. Mas para mim é mais fácil conseguir agarrar o real na
pintura por causa das situações que referi.
Como é que descreve o seu estilo?
Não sei.
Pontualmente parece realismo, talvez social. Por vezes parece realismo sujo,
associado a correntes literárias, ao Raymond Craver, provavelmente com ligações
à Beat Generation, ao Jack Kerouac, ao Allen Ginsberg, ao William S. Burroughs,
com essa pretensão de escrever sobre a própria realidade, mas remetendo já para
uma filtragem. Como se fosse uma tentativa de apnéia, de conseguir suster a
respiração e quando se emerge à superfície deita-se tudo para fora. Às vezes
vejo a minha pintura dessa forma. Não tenho a pretensão literária mas
pontualmente pode ser escrita. Porque não? Uma escrita, onde o desenho, a tinta
e a cor servem para escrever sobre os meus amigos através da pintura. Não sou
um escritor mas se escrevesse bem talvez escrevesse sobre eles. Não tenho essa
capacidade, mas possivelmente utilizo a pintura para escrever, como se pudesse
deixar retratos escritos. Quando pinto um retrato dedico-lhe talvez o tempo da
escrita, uma escrita diferente, mas com a pretensão de sobretudo retratar o
conjunto das situações que nos envolvem. Não me limito a retratá-los, faço-o
através dos objectos, da maneira como eles pegam, como fumam, como bebem. E se
a pessoa conseguir mergulhar na pintura quase consegue habitá-la.
Através da
pintura também arrasto o legado da pintura, já que revisito algumas técnicas da
pintura antiga. Daí sentir que enterro e desenterro o corpo da pintura. Porque
ela na realidade, como todas as artes, não me parece que vá morrer. Sinto que
pintura tem um efeito, tem a capacidade de dizer: Ergue-te levanta-te, vive.
Mas sendo ela já um corpo morto, às vezes a pintura torna-se um pesadelo, às
vezes penso que sinto que destruo a pintura.
Destruir a pintura?
Destruir a
pintura no sentido em que utilizo uma máquina do tempo. Existe um autor que
fala do problema da pintura e faz comparação com o filme “The trouble with
Harry” de Alfred Hitchcock, onde havia um corpo morto que está sempre a ser
ocultado com as folhas de Outono que caem. No Verão ele surge novamente, e esse
aparecimento é semelhante a quando me entrego à pintura no meu trabalho. Talvez
seja ridículo dizer isto, mas é como se o meu lugar aqui na terra fosse
trabalhar sobre isso, desenterrar o que me parece que está ocultado. A pintura
funciona quase de uma forma traumática, pensar a pintura, e ver tantos séculos
de boa pintura mas também de má pintura marcam o homem. É estranho. Por isso é
que às vezes compreendo que no século XX hajam propostas de destruir a pintura,
de romper com a pintura, como se ela fosse uma sanguessuga que já não tem
qualquer fundamento. Mas será que a pintura já não se entranhou no homem? E
tornou-nos também pintura, quase uma espécie de doença. A cultura também é
isso, entranha-se.