Duas pinturas sobre a vida (e a morte)

Por Laura Castro.


Dezembro 2009

Uma das linhas de desenvolvimento dos estudos de cultura visual estruturou-se ao evidenciar a presença das mulheres artistas na história da arte e ao sublinhar o seu contributo para a cultura artística das respectivas épocas, abrindo um conjunto de perspectivas novas sobre fenómenos escassamente abordados até às últimas décadas do século XX. Paralelamente, este enfoque feminista traduziu-se numa série representações da mulher, de pontos de vista inéditos, inscritos numa matriz, também ela feminina, que contrariou a óptica masculina, tida como dominante na evolução da pintura ocidental. Curiosamente, a instauração de uma feminilidade pensada, conceptualizada e cumprida fora desta órbita masculina, nem sempre teve origem no trabalho de mulheres artistas, senão que se verificou na produção proveniente de homens, tornando o problema destas representações e da sua interpretação mais complexo do que a simples associação do género ao sexo (feminino ou masculino) poderia dar a entender. Biologia e cultura, realidade e fantasia, presente e passado têm uma influência muito importante neste campo e este reconhecimento permitiu ultrapassar as habituais “maternidades” saturadas de olhares masculinos, estilizadas e de vocação celebrativa, e diversificar amplamente os temas tratados.
Estas observações foram motivadas pela visita à exposição de Arlindo Silva na Galeria MCO-Arte Contemporânea, no Porto, composta por dois trabalhos e intitulada Mãe. De facto, a um primeiro olhar, esta exposição – pelo tema, pelo modelo de representação e pelas imagens criadas – parecia provar que há um olhar sobre o feminino que não provém do sujeito de sexo feminino e que a prática artística não radica obrigatoriamente nesta condição nem é orientada unicamente em função da diferença que nela se envolve.
No entanto, este pensamento cedo se desfez perante outras implicações da pintura. Arlindo Silva conciliou a maternidade e o matricial – o leito de um parto e a água transparente de um banho, lugares uterinos onde se divisa o familiar, o doméstico, o confortável e, ao mesmo tempo, o estranho, o desabrigado, o desconfortável, dimensões que se complementam e que o corpo feminino pode acolher. Numa das obras encena-se o domínio do pré-identitário, do pré-articulado, das sensações originárias, não formuladas, ainda em expectativa; na outra, o domínio do pós-identitário, do mundo plenamente articulado, pós-discursivo. Talvez por isso uma pintura é mais crua, a outra é atravessada por uma névoa; uma é frontal e aberta, a outra o seu inverso; uma representa uma jovem, a outra não. Este diálogo circular entre as duas imagens só é possível porque a exposição se limita às duas peças que, apresentadas em proximidade, embora sem formar um díptico, contêm outras oportunidades de leitura.
Mas o mais interessante, e que contribuiu para alterar aquele primeiro olhar, é o espaço que o pintor ocupa, espaço entre as duas pinturas, simultaneamente físico e psicológico. O espaço do pintor não corresponde ao sítio diante do modelo, diante do motivo, diante do real (embora esse possa também ser evocado), corresponde ao lugar entre o que ele próprio e os modelos representam, lugar limiar, íntimo. É um lugar de passagem, de construção, de geração da subjectividade, habitado pelo eu e pelo outro, sem que a presença do eu se corporize, apenas pressentida. A condição e o género parecem afinal ter peso na definição dos caminhos da pintura e na procura do seu significado. Por isso esta pintura biográfica e auto-biográfica é sobre o eu subjectivo e sobre a sua procura na triangulação afectiva que propõe.
Esta dimensão cumpre-se também na exposição no momento em que Arlindo Silva se coloca diante das pinturas para analisar as circunstâncias em que foram realizadas, as divagações que lhe sugeriram, as reminiscências, às vezes vagas, que delas ficaram, os recursos formais utilizados, a fotografia e pintura. O seu espaço materializa-se na galeria, a sua presença concretiza-se finalmente na sala de exposições e assegura a possibilidade de um pensamento sobre as obras, ao mesmo tempo que mostra a diferença entre a temporalidade da pintura e a da teoria. Se o espaço da galeria já permitia o diálogo atrás referido, agora acrescenta a possibilidade da crítica e lembra-nos a importância da conjuntura de mediação para o entendimento da obra. Por outro lado, adiciona ainda aquelas características hospitalares, brancas e frias, tantas vezes referenciadas, que aqui estabelecem uma relação imediata com os interiores representados.
As duas obras são imaculadamente pintadas, no seu realismo virtuoso de matéria e detalhe, no cuidado com a anatomia e o contexto, na atenção à luz e ao que ela faz aos objectos e à mácula que sobre eles cai, paradoxalmente. As duas obras são ainda transfigurações porque, para lá do quotidiano maternal, o adormecimento atravessa-as, o sono paira sobre elas e o sonho também.
Ao olhar para as duas pinturas não posso deixar de recordar o gosto simbolista pela representação das idades da vida que motivaram tantos artistas da passagem do século a criar símbolos da infância, da juventude e da morte, da inocência e da maturidade, da emergência e do desvanecimento, em figurações requintadas e de grande decorativismo, cujos finais se juntavam aos começos, eternos recomeços, em propostas de círculos, como nestas pinturas. O tempo pode ser o seu protagonista e não posso deixar de recordar os versos de Albano Martins:
A vida
– essa invenção magnífica
da morte.