Por Óscar Faria.
Público, Ípsilon, Sexta-feira 15 de Janeiro 2010.
Mãe
De Arlindo Silva
Porto. MCO Arte Contemporânea. R. Duque de Palmela, 141/143.
Até 17/1/2010.
No século
XVII, Rembrandt van Rijn pintou alguns retratos da sua mãe, Neeltgen
Willemsdochter van Zuytbrouck, filha de um padeiro, que chegou também a
servir-lhe de modelo, por exemplo, para a personagem bíblica Ana, numa pintura
onde surge absorvida no estudo do velho testamento. A vontade de fixar para a
posteridade a imagem de um ente querido é um dos assuntos centrais da arte. Recordem-se os retratos de Faium, que vieram a ser descobertos e estudados após 1615, data
da primeira descoberta deste tipo de obras (século I a.C. - século II d.C.) durante
uma peregrinação à Terra Santa organizada pelo nobre italiano Pietro Della
Valle. Feitas ainda em vida, estas pinturas acompanham o corpo do defunto no
seu enterro.
A
exposição ”Mãe” de Arlindo Silva (Figueira da Foz, 1974), confronta o
espectador com duas pinturas de média dimensão: “À espera de Verónica” (50x66,5
cm) e “Mãe” (51,5x68,5 cm). Nos dois casos, o assunto pertence à esfera íntima
do artista: a proximidade do nascimento da primeira filha, fixado a partir de
uma imagem da progenitora captada na cama do hospital, antes do parto; e uma representação
da sua mãe, sentada no interior de uma banheira. São imagens hiper-realistas,
realizadas com recurso a fotografias, o que lhes acentua a dimensão privada, ou
seja, distante de olhares exteriores. Há, de facto, uma dificuldade do olhar em
aceder a esta transmissão de mãe a mãe através das mediações fotográfica e
pictórica, como se, paradoxalmente, a arte se despegasse da vida nesse desejo
de a prolongar para um futuro indefinido — ausente das imagens, a filha é, de facto,
quem acrescenta uma respiração àquele mundo de corpos silenciosos, sem
movimento.
Nesse arco
que vai de mãe a mãe, há uma outra ideia que sobressai: o modo como Arlindo
Silva representa as duas figuras — uma de frente, num instante de espera, de
expectativa, a olhar directamente para a câmara fotográfica, a barriga a
emergir, afirmativa, sob os drapeados de lençóis e da roupa da parturiente, a outra
nua, de costas, sentada numa banheira com água pela metade traduz uma espécie
de campo e contracampo de uma mesma condição, própria do corpo feminino, a de
dar à luz. As pinturas testemunham essa dupla condição de mãe e filha de cada
uma das mulheres representadas: ambos os trabalhos são habitados por um
ambiente aquático; mais tumultuoso, aquele onde se vê a espera do parto, mais
sereno o outro, invadido por uma luz coada — neste caso, a posição da mãe do
artista é fetal, sublinhando esse regresso à origem da vida e, por analogia, à
própria experiência da maternidade celebrada em “À espera de Verónica.”
Ao
realizar esta exposição com apenas duas pinturas, ambas pertencentes a
colecções particulares e tecnicamente irrepreensíveis, Arlindo Silva realiza um
gesto raro e a contrapelo da opção em apresentar um maior número de trabalhos,
escolhida pela maioria dos artistas — há um exemplo que pode ser citado a este propósito,
a mostra realizada pelo italiano Rudolf Stingel na galeria nova-iorquina Paula
Cooper, em 2005, na qual era revelada apenas uma pintura a preto-e-branco na qual
figurava a própria galerista, numa imagem apropriada de uma fotografia tirada
por Robert Mapplethorpe em 1984. Quanto aos modelos pictóricos, eles tanto podem
vir de Rembrandt como de Gerhard Richter (as pinturas dos seus filhos Betty,
Moritz e Elia e da sua mulher, Sabine, realizadas a partir de instantâneos
incluídos no Atlas, arquivo de imagens reunido desde o início dos anos 1960),
de Lucien Freud (o retrato de Kate Moss grávida, pintado em 2002, ou as
representações da mãe, sobretudo as datadas dos anos 1970), ou ainda os nus de
Pierre Bonnard.